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Comentário de Meire Bottura sobre a publicação
A Vida do Wilson Simonal não foi muito "Bossa Nova"
da autoria de Franz Kreutner e publicado no blog “Rádio Forma & Elenco”
parte 1 - 27 de nov. 2008
parte 2 - 02 de dez. 2008
Meire Bottura disse...
Martoni e Franz, que beleza de texto! Parabéns a ambos, Simonal merece.
Infelizmente, apesar de iniciativas como a de vocês, e de tudo o que já foi dito e esclarecido sobre o suposto envolvimento dele com a repressão, ainda surgem por aí muitos comentários conflitantes. Penso que não deveria ser assim, no entanto, é bom que isso aconteça para que, quem sabe, o brasileiro finalmente se interesse pelo que realmente importa – a obra que ele nos deixou. Se tiver de ser desta forma, que seja, afinal, o assunto ganhou tamanha proporção que acabou por encobrir a magnitude do artista.
O tema desperta paixões e discussões calorosas e vira-e-mexe surgem, principalmente na internet, comentários de pessoas que desconhecem os fatos e tampouco se preocupam em checar, apenas pegam carona no momento e manifestam opiniões com base no senso comum e em diz-que-diz. Outros, questionam processos judiciais que na época atingiram os seus pares, porém, se contradizem ao validá-los quando estes corroboram as suas opiniões. Coerência não é – não deveria ser – excludente conforme a pauta.
Penso que é preciso saber distinguir o artista de sua obra: ele pode ser revolucionário na arte e reacionário na vida particular, ou vice-versa. Porém, admito, eu repudiaria veementemente Wilson Simonal se ele realmente tivesse colaborado com os órgãos de repressão, porque, ao contrário de grande parcela dos brasileiros, procuro saber o que acontece em meu país e tenho a exata noção do que foi o regime militar e suas conseqüências.
Não estou dizendo que Simonal era santo; ele cometeu um gravíssimo erro no infeliz episódio com o ex-contador. Mas, não esqueçamos, ele foi processado, condenado e cumpriu a pena – pagou a dívida com a sociedade. Entretanto, o desfecho foi outro, sua ingenuidade beirou à burrice, ele não percebeu a seriedade da situação e achou que sua condição de artista famoso lhe daria respaldo. Resultado, deu munição para os que queriam vê-lo pelas costas: a mídia e a classe artística.
Para que entendamos a complexidade do assunto, é preciso frisar que Simonal era considerado persona non grata tanto pela esquerda, quanto pela direita. Era tido como perigoso porque dominava a massa – contra fatos não há argumentos. O estopim da história foi o testemunho do policial Mário Borges ao justificar o uso das dependências do dops para interrogar Rafael Viviani (contador de Simonal, suspeito de roubo). Borges, em sua própria defesa, mentiu em juízo: afirmou ter acreditado que o contador era um terrorista perigoso porque Simonal era um informante (da repressão) de longa data. Entretanto, o inspetor Vasconcelos – superior direto do policial – desmentiu a declaração, mas este depoimento ESTRANHAMENTE não ganhou as páginas dos jornais. Esclareço, a afirmação não é minha, consta no inquérito criminal instaurado pelo promotor público Pedro Fontoura na 23ª Vara Criminal do Rio de Janeiro (então Guanabara) em 13 de outubro de 1972.
O depoimento do Inspetor Vasconcelos desmentindo o policial acabaria de vez com as especulações, mas, certamente não venderia jornais. Já vimos este filme, não são poucos os casos que conhecemos. Simonal foi desmoralizado porque a mídia promoveu uma campanha sórdida contra ele e, convenientemente, a classe artística tratou de engolir rapidinho toda a história.
Dizem que Simonal cavou a própria cova porque era arrogante e metido. Sim, era mesmo, mas, qual é o problema, é crime? A meu ver, ele não destoava em nada de tantos outros artistas a não ser pelo pecado de ter nascido negro. Simonal incomodava porque não dizia amém à sociedade racista da época. Não é difícil imaginar o burburinho em torno de um negão boa-pinta, desfilando a bordo de carrões e derretendo o coração das lourinhas de família. Era um sacrilégio, a sociedade não engolia. Se fosse branco, certamente não faria diferença.
O Maestro Erlon Chaves foi outra vítima da intransigência racial explícita que determinava: negros devem saber qual o seu lugar. Ele afrontou as más línguas ao conquistar a maior beldade da época, a louríssima Vera Fischer, e a gota d’água foi o episódio quero mocotó. Ao apresentar-se rodeado de lindas mulheres, Erlon insultou a sociedade: beijou uma bela loura, olhou para as câmeras e disse que com aquele gesto estaria beijando todas as brasileiras. Saiu do palco algemado, ficou vários dias desaparecido, foi perseguido, proibido de exercer sua profissão por 30 dias em todo o território nacional, e por aí vai. Esta é uma das histórias que este triste país carrega no currículo.
Naquela época, o preconceito racial no Brasil era explícito, normal e corriqueiro, o estranho era alguém agir diferente. E, não nos iludamos, a diferença daqueles tempos para os dias atuais é que agora, além de ser crime, o racismo também é politicamente incorreto, o que não o elimina, apenas camufla. Como disse Florestan Fernandes, o brasileiro tem preconceito de não ter preconceito.
Sim, Wilson Simonal era empinado e metido, e estava certo, tinha de se armar contra os que não admitiam que um negro nascido numa favela chegasse lá. E, além do mais, ele podia ser o que quisesse, afinal, não era qualquer um que conseguia ser o maior cantor de um país tão grande. Ele incomodou sim: arrebatou multidões e alardeou seu talento aos quatro cantos... imperdoável.
Tudo poderia ter sido diferente não fosse a mídia, que enaltece e destrói a bel-prazer e, principalmente, emudece quando lhe convém. A história de Simonal é mais uma das gritantes perseguições do furo jornalístico em detrimento da verdade. A nossa imprensa tem no currículo vários episódios de carreiras e vidas destruídas por precipitação, injustiças, mentiras plantadas, interesses escusos, ou até mesmo por incapacidade profissional. Não raro, age de maneira arbitrária, descontextualiza e fragmenta as informações transformando-as em teses. Resultado, ao simplificá-las unilateralmente, em vez de uma denúncia fundamentada, define uma prova de crime e dá o veredito. Basta lembrar do linchamento público promovido contra os donos da Escola Base.
Sim, houve racismo contra Simonal, porém, não foi o único fator que determinou a sua destruição. Sua arte representava alegria num momento de dor e perdas, o que gerou perseguição policialesca por parte dos intelectuais engajados que não podiam questionar publicamente o sistema. Estes, transformavam suspeitas em verdades absolutas e, já que eram obrigados a engolir a humilhação de viver sob o jugo dos militares, se vingavam em bodes expiatórios como o Simonal. Eis a atuação do Pasquim que, sabemos, atirava para todos lados sem medir conseqüências. Claro, sei que eram outros tempos, mas, digam isso à família do cantor.
Se ainda restam dúvidas, por que será que até hoje não apareceu uma única pessoa que tenha sido delatada por Simonal? Desafio a quem quer que seja a citar uma, qualquer uma, apenas uma: o filho de um delatado, neto ou sobrinho, um parente qualquer, um amigo, ou um conhecido. Qualquer um bastaria. Claro, não apareceu porque essa pessoa não existe. O próprio Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho - Rede Globo) afirmou que se Wilson Simonal fosse colaborador da repressão, ele teria sido, naquela época, a única atração com total aval para ir ao ar na Globo. Elementar...
Fico pasma que ainda pairem quaisquer dúvidas. Infelizmente, muitos não se dão ao trabalho de analisar o que há por trás deste emaranhado de informações conflitantes. As ideologias nos impedem de avaliar os fatos com isenção porque têm a pretensão de formar uma lógica para obter imagem universalizada de determinado assunto. Não é difícil compreender o que houve, basta o brasileiro ter real interesse em pesquisar. Já passou da hora de reconhecermos que Wilson Simonal é um patrimônio cultural nosso, devemos isso a nós mesmos. É preciso dizer, repetir e jamais esquecer que, à custa do calvário de Simonal e do enorme sofrimento da família, a nossa cultura ficou mais pobre.
Wilson Simonal merece a atenção dos estudiosos brasileiros, e não apenas citações. Esta história grita, clama ser ouvida, não pede preces, pede justiça, ele sempre implorou ser ouvido, sem êxito. Os seus discos, sempre esmerados pela produção que os envolvia, eram os mais vendidos do Brasil graças ao público que o consagrou como um de nossos maiores intérpretes. Negar a sua participação na história da nossa música é impossível. Evitar preconceitos será sempre uma boa introdução, e reverenciá-lo como artista é, definitivamente, o nosso dever.
28 de novembro de 2008 17:06
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